"Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti." Santo Agostinho

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Católico adora Nossa Senhora?


“Depende da precisão!”, respondeu alguém já irritado com tantas questões a respeito. De fato, isso não é uma pergunta intrigante. É irritante. Mas é compreensível, quando se leva em conta a linha de raciocínio da teologia e da prática devocional protestante.

Na cidade onde eu nasci tinha uma enfermeira evangélica. Certo dia aconteceu um acidente: uma caminhonete dessas que trazia gente da zona rural para a feira virou com todo mundo na carroceria. É possível imaginar o destroço. No hospital, um senhor em particular estava desesperado, por causa de sua esposa que corria risco de vida.

A enfermeira evangélica veio consola-lo e, com bastante sensibilidade, dizia que ficasse despreocupado, pois Deus o amava. Ele a abraçava e, chorando, dizia: “Ah! Meu padrinho Cícero!”. Ou então: “Oh! Minha Nossa Senhora!”. Não tem jeito. O povo é mesmo devoto.

Mas não se trata de uma adoração. O Catecismo da Igreja Católica esclarece: “A adoração é a primeira atitude do homem que se reconhece criatura diante de seu Criador. Exalta a grandeza do Senhor que nos fez e a onipotência do Salvador que nos liberta do mal. É prosternação do Espírito diante do ‘Rei da Glória’ e o silêncio respeitoso diante do Deus ‘sempre maior’” 1. Definitivamente, não é esse o sentimento de um católico em relação a Maria, mãe de Jesus.

Talvez o principal argumento bíblico em favor do culto mariano seja a expressão que São Lucas colocou na boca da própria Maria: “Todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1, 48). Portanto, a honra que a ela se dedica é legitima e ocupa lugar especial na Igreja. Desde remotos tempos a Virgem Maria é venerada sob o título de “Mãe de Deus”: “Este culto (…) difere essencialmente do culto de adoração que se presta ao Verbo encarnado e igualmente ao Pai e ao Espírito Santo, mas o favorece poderosamente”2.

Entendida sem preconceitos, a devoção Mariana não se opõe ao culto de adoração ao Senhor, mas o favorece. Até porque também ela adora a Deus de todo o coração: “Minha alma glorifica ao Senhor e meu espírito exulta de alegria em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 46b-47).

É verdade que, na prática, esse limite entre adoração e veneração – que conceitualmente parece-me muito claro – às vezes se apresenta um pouco tênue. As razões disso são históricas, assim como históricas são também as razões porque, em geral, os protestantes estão sempre combatendo as devoções do catolicismo popular. O catolicismo brasileiro é de origem portuguesa, marcado por um certo distanciamento entre o fiel e Deus. Essa distância era resolvida com a intermediação dos santos e, principalmente, através da figura materna de Maria. Numa sociedade autoritária e patriarcal, a imagem de Maria no devocionário popular chegava a contrastar com a de Deus Pai, possivelmente associada a medo e castigo. Por isso muita gente – por assim dizer – sente-se mais à vontade com Nossa Senhora.

Por sua vez, o protestantismo que se instalou no Brasil é de origem americana. “Embora muitas mentes influentes (…) relutassem em negar que os católicos fossem cristãos, num sentido geral a ação missionária protestante dirigiu-se de modo a desconhecer essa qualidade nos católicos. Eles foram nivelados aos demais não cristãos”3. Desde a Constituição Brasileira de 1891, que garantiu o livre exercício e propagação da fé protestante no Brasil, que a maioria das igrejas evangélicas criticam o catolicismo e combatem fortemente os “erros do romanismo”.

As raízes puritanas tornaram o protestantismo brasileiro muito agressivo. “Os puritanos (…) sentem-se (…) com o direito e a liberdade de construir no Novo Mundo um Estado puritano para servir de orientação a todos os verdadeiros cristãos em todos os lugares. Sentiam-se como o povo escolhido de Deus, tanto no sentido espiritual como no intelectual”4. Nesse quadro ideológico, dá até para entender porque os Estados Unidos, ainda hoje, acham-se no direito de interferir na política interna de quase todos os países do mundo.

De qualquer forma, a piedade da Igreja Católica para com a Santíssima Virgem é intrínseca ao próprio culto cristão5. É inevitável uma certa mistura. Mas não creio que Deus se ocupe muito com essas questões conceituais. Ele está mais interessado na disposição do coração do fiel. Creio, sim, que essa coisa de perseguir a Virgem Maria não dá muito certo. Cai por si mesmo. Tenho uma amiga que diz que não tem quem tire da cabeça dela que quem quebrou aquela imagem de Nossa Senhora Aparecida e jogou no rio Paraíba foi um crente. E veja no que deu: no maior santuário mariano do Brasil. Não é muito vantajoso denegrir a imagem daquela que o próprio Deus fez questão de exaltar (cf. Lc 1, 28-30). E isso os verdadeiros evangélicos sabem muito bem.

Outrossim, é bom lembrar que os rótulos (“católico”, “crente”, “renovado”, “batizado”, etc) não refletem necessariamente o conteúdo. Conheço pessoas que praticam variadas formas de religiosidade. Frequentam missa, adoração, grupo de oração. Dizem-se amantes da Igreja e do Papa. Só assistem programação católica na televisão e no rádio. Mas não conseguem traduzir na vida o conteúdo de sua fé.

Soube de uma mulher que fazia todas as coisas relativas à manutenção da Igreja e, quando ia embora, passava antes na sala do padre e dizia: “Padre, se o senhor espirrar, saúde, viu?” Quem contou isso deve estar exagerando. Mas a sátira ajuda a perceber que não são os rótulos que fazem os cristãos.

Em certa ocasião alguém passou um bom tempo diante de mim criticando um casal de uma determinada religião porque havia deixado o filho morrer em vez de permitir que lhe fizessem uma transfusão de sangue. Sua crítica era incisiva e até com certa razão. Mas algo me ocorreu no momento. Foi então que disse: “Eles foram capazes de permitir a morte do filho por causa da mentira em que acreditam. E nós? O que somos capazes de fazer pela verdade em que cremos?”. 

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